Para entender esse baião
Livro conta a história da relação conturbada de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha
"Você me respeita, eu respeito você, e a coisa mais bacana da minha vida é você. Você é Gonzaguinha. Eu sou Gonzagão. Encontramos esse slogan. Eu me envaideço muito de você, sabia? Nunca me pediu nada. Te dei um violão velho, barato. Nunca me preocupou. Eu sou pai postiço, mas sou pai e tenho sido pai, não é verdade?". O inédito depoimento faz parte da biografia "Gonzagui nha e Gonzagão – Uma história brasileira", da escritora paulistana Regina Echeverria, a mesma de "Furacão Elis" e "Cazuza: só as mães são felizes".
Enternecido testemunho, pro ferido num raro momento de de sembaraço do cantor e sanfoneiro pernambucano, foi extraído de 20 horas de entrevistas gravadas pelo seu filho carioca, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, entre 1979 e 1980, quando excursionaram juntos fazendo o show "Vida de viajante". O plano de Gonzaguinha, interrom pido por um acidente fatal de carro em 1991, era ver publicado um livro em louvor ao pai. Sua vontade se concretizará, pelas mãos de Regina, dia 27, com o lançamento na Livra ria Unibanco Artplex, em Botafogo.
Menino foi criado por amigos do pai
Ao longo das 310 páginas, toma- se conhecimento da conturbada re lação entre os artistas. Quando o fi lho nasceu, em 1945, Gonzagão já ti nha 25 discos gravados como san foneiro e estreava como cantor. Aos 2 meses, o bebê foi afastado da mãe, a cantora Odaléia Guedes dos Santos, que contraíra tuberculose. Foi criado no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, por Leopoldi na de Castro Xavier e seu marido, Henrique Xavier Pinheiro, o Baiano do Violão, amigos de Gonzagão. Foi com o pai de criação e não com o biológico que o menino deu os pri meiros passos na música. Quando o filho tinha 3 anos de idade, o Rei do Baião se casou com outra mulher, e Odaléia morreu.
– Como estava sempre fora do Rio fazendo turnês e tanto a sua no va mulher quanto a sogra rejeita ram Gonzaguinha, ele teve de dei xar o filho sob os cuidados de Leo poldina e Xavier. O casal levava o garoto para visitar o pai, então não houve corte de relações. Mas quan do o menino começou a crescer, em contato com a malandragem do Morro de São Carlos, e a ficar indis ciplinado, Gonzagão o botou num colégio interno. O velho acreditava que o filho não daria em nada, cha mava-o de comedor de bolacha. Gonzaguinha precisou mostrar ao pai que podia vencer na vida, que tinha talento. Seu primeiro público foi o pai. Foi para ganhar seu respei to e seu amor que ele batalhou tan to, e os conquistou – conta Regina, que passou dois anos realizando a pesquisa para o livro.
As longas entrevistas feitas por Gonzaguinha com o próprio pai, no fim da década de 1970, foram uma valiosa fonte de informação, cedida à Regina pela viúva do cantor, Lele te, e seus quatro filhos. Livros e re portagens já publicados e conver sas diretas com Gonzaguinha, de quem ficou amiga, também ajuda ram a autora a enriquecer a obra.
– Conheci Gonzaguinha quan do fiz uma grande reportagem com ele em 1979, para a capa da revista "Veja". A princípio, achei que não conseguiria fazê-la, pois ele era carrancudo e falava pou co. Aliás, essa era uma de suas três características marcantes. Era também um conhecido pão- duro e mulherengo. Mas ele viu que a entrevista lhe traria benefí cios e foi se abrindo. A última vez que o vi foi no enterro do pai (em 1989), que fui cobrir como repór ter, e ali ele tratou mal a imprensa também – lembra Regina.
Sucesso veio com "Explode coração"
Para complementar o trabalho, a escritora entrevistou muita gen te que conviveu com os biografa dos. Ivan Lins, por exemplo, con tou ter aprendido harmonia com Gonzaguinha. Os dois se conhece ram no fim da década de 1960, na Rua Jaceguai 27, na Tijuca, ende reço do médico Aloísio Porto Car reiro, freqüentado também por Lucinha Lins, César Costa Filho,Aldir Blac outros
Quem levou Gonzaguinha para lá foi a amiga Ângela Leal, sua vizinha na Ilha do Governador, onde ele mo rava com o o pai biológico – con vívio iniciado quando ele tinha 16 anos, numa casa em Miguel Pereira. O capítulo "Rua Jaceguai 27" fala dessa turma, a do MAU (Movimen to Artístico Universitário) e desse período, em que Gonzaguinha ga nhou o primeiro lugar no II Festival Universitário de Música Popular da Tupi, com a canção "O trem", sob vaias. O sucesso popular, contudo, só veio uma década depois, em 1979, com o disco "Gonzaguinha da vida" e a música "Explode coração", interpretada por Maria Bethânia.
– Gonzaguinha se engajou no movimento político-estudantil de esquerda, e isso foi mais um ponto de conflito com o pai, que era de di reita e tinha passado nove anos no Exército. Foi no tempo de quartel que Gonzagão comprou, em presta ções, sua primeira sanfona, de um caixeiro-viajante. Ele estava em Mi nas e, depois de pagar tudo, foi re ceber o instrumento em São Paulo. Era um golpe. A loja não existia. Da li, ele foi para um hotel, com dinhei ro contado. O filho do dono do ho tel tinha uma sanfona igual à que ele queria. Gonzagão gastou tudo o que tinha para comprá-la – conta Regina, que fez outras descobertas curiosas, como uma gravação do velho de "Pra não dizer que não fa lei das flores", hino contra a ditadu ra. – Ele gravou a música sem sa ber seu significado.
Ela aponta mais uma diferença entre pai e filho, para além das convicções políticas:
– O velho cantava em comí cios de qualquer partido, bastava que lhe pagassem. Já Gonzagui nha foi engajado. Foi tão censura do quanto Chico Buarque, mas fa zia modificações nas letras das músicas e conseguia as libera ções. Era um malandro carioca, criado no morro, numa época em que a contravenção era o jogo do bicho e a prostituição, e não o trá fico de drogas e armas.
No livro, descobrimos que Gon zaguinha, ainda criança, avisava os bicheiros quando a polícia chega va. Função semelhante a dos ‘fo gueteiros’ e ‘soldados’ do tráfico hoje. O que leva à terrível pergun ta, extrabiográfica: quantos Gonza guinhas se perderam nas violentas favelas dos últimos anos?