Mas continua firme na boca do povo nordestino
Pedro Alexandre Sanches, repórter especial iG Cultura | 27/06/2010
Luiz Gonzaga viveu 76 anos e partiu em 1989, deixando atrás de si um legado monumental, talvez o maior de toda a música brasileira do século passado. Para qualquer um que conheça com profundidade a obra do coautor e intérprete original de "Asa Branca" (1947), a constatação é óbvia – mas curiosamente sua obra não é das mais citadas, conhecidas ou admiradas entre aqueles que costumam se debruçar com seriedade sobre a música popular brasileira.
Gonzagão foi um dos artistas mais populares do Brasil ao longo de quase cinco décadas de atuação profissional, entre 1941 e 1989. Continua onipresente, como atesta o sucesso de seus baiões, xotes e xaxados nas festas juninas pelo país adentro, em pleno 2010. Mas uma cisão inaugurada antes de ele nascer em Exu, no sertão pernambucano, ainda persiste: o Sudeste e o Sul do país não compreendem (ou não demonstram compreender) a grandeza do “rei do baião”. O Brasil dito cosmopolita que admira Antonio Carlos Jobim não consegue, não quer ou não admite admirar Luiz Gonzaga e seu Brasil sertanejo.
A convivência não-pacífica tem raízes históricas tão profundas quanto a dor escondida atrás de forrós gonzaguianos como "Assum Preto "(1950), dos versos “tarvez por iguinorança/ ou mardade das pió/ furaro os óio do assum preto/ pra ele assim, ai, cantá mió”. Gonzagão despontou na era Getúlio Vargas, em meio à Segunda Guerra Mundial e à Política da Boa Vizinhança, pela qual os Estados Unidos nos acostumavam a gostar mais de Frank Sinatra e Hollywood que de nós mesmos. Surgiu na Rádio Nacional do Rio de Janeiro de sanfona em punho, com roupas de vaqueiro, chapéu de cangaceiro e alpercatas de couro – foi asperamente repreendido pelo diretor e por um período teve de associar o acordeon a um sisudo smoking.
O jovem sertanejo saíra de casa aos 18 anos para se incorporar ao Exército, fugira em seguida para o Rio e se iniciara como artista profissional abafando a própria origem e tocando tangos, boleros e valsas em prostíbulos da zona do mangue carioca. Após cinco anos como mero instrumentista na gravadora RCA, pôde reincorporar, graças ao sucesso de "Asa Branca", a própria identidade e as vestes de Lampião.
Estilizou a música nordestina de sanfona, triângulo e zabumba a partir de "Baião" (1949) e virou herói nacional com uma sequência formidável de sucessos nordestinos: "Juazeiro" (1949), "Qui Nem Jiló" (1950), "Boiadeiro" (1950), "Olha pro Céu" (1951), "Paraíba", "Pau de Arara" (1952), "O Xote das Meninas", "Vozes da Seca" (1953), "Riacho do Navio" (1955), "Forró no Escuro" (1957)…
De rei a brega
Gonzagão se tornou hegemônico no Brasil dos anos 40 e 50, a ponto de virar moda entre meninas de sociedade tomar aula de sanfona, como mostra uma cena do documentário O Homem Que Engarrafava Nuvens, de Lírio Ferreira. Não foi à toa que os militantes da revolução universalista da bossa nova, a partir de 1958, lutaram incansavelmente por extirpar a sanfona da música brasileira. De modo geral, os garotos cultos e educados de Ipanema consideravam de “mau gosto” a arte popular praticada por gente como Gonzaga e Jackson do Pandeiro (ironicamente, o líder natural do movimento era um sertanejo baiano de Juazeiro, João Gilberto).
O confronto era mais que musical, era uma guerra de classes sociais. Ainda hoje, meio século depois, o forró é subliminarmente tratado como um gênero musical das classes subalternas. Carrega multidões às casas nordestinas da periferia paulistana, mas nem por isso encontra espaço nos meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo.
Gonzagão pulou por cima de todo e qualquer obstáculo porque adotou a brasilidade (e, em particular, a nordestinidade) como modo de ser e se expressar. “Lá no meu sertão pro caboclo lê/ tem que aprender outro ABC/ o jota é ji, o ele é lê/ o esse é si, mas o erre tem nome de rê/ até o ipsilon lá é pissilone”, ensinava sua própria língua em "ABC do Sertão" (1953).
Entendido por vezes como um cultuador da ignorância, transformou sua própria falta de educação formal em combustível para campanhas musicais pró-educação, como em "Acordo às Quatro" (1979): “E os menino, digo sempre à Iracema,/ em Santana de Ipanema todos os três vai estudá/ pois eu não quero fio meu anarfabeto/ quero no caminho certo da cartilha de ABC/ eu memo nunca tive essa sorte/ mas eu luto inté a morte mode eles aprendê”.
Os detratores estigmatizaram-no como um entusiasta da ditadura militar, o que de fato ele foi. Mas Gonzagão era bem mais complexo do que a MPB de extração universitária desenvolvida a partir dos anos 60 se dispunha a admitir. Como a média dos brasileiros, era um governista por natureza, desde quando serviu à pátria e a Getúlio Vargas (o que não o impediu de trocar a farda de soldado pelos trajes de cangaceiro, para seguir sua intuição artística).
Em 1959, sob o governo de Juscelino Kubitschek, deu voz à "Marcha da Petrobras": “Brasil, meu Brasil,/ tu vais prosperar, tu vais crescer inda mais com a Petrobrás”. Dois anos depois, em "Alvorada da Paz", celebrou o adversário que sobrepujou JK: “Jânio Quadros, tu és um soldado/ sentinela da democracia/ o Brasil foi por ti libertado/ reação nacional, valentia”.
Católico fervoroso e devoto de Padre Cícero, lançou o hino religioso-ufanista "Rainha do Mundo", em 1964. A letra, que na origem poderia parecer de resistência ao golpe militar, ganharia significado adesista ao ser regravada, já em 1967: “Senhora rainha do mundo/ rogai por nós nesta terra varonil/ agora e na hora de lutar pelo Brasil/ não deixeis que ninguém ponha a mão/ neste auriverde pendão/ (…) olhai e amparai esta terra de liberdade”.
Acossado pela bossa nova, que o jogara a escanteio, tornou-se hostil aos movimentos modernizadores e às palavras de ordem que a MPB universitária encampava. Em 1968, afirmou, num "Canto sem Protesto": “Pode dizer que eu não presto/ que não presta o meu cantar/ meu canto não tem protesto, meu canto é pra alegrar”. No mesmo disco, explicitou o ressentimento contra quem o interpretava como um porta-voz do atraso e advogou um "Nordeste pra Frente", antecipando em dois anos o “pra frente Brasil” de 1970: “Senhor reporte, já que tá me entrevistando/ vá anotando pra botar no seu jorná/ que o meu Nordeste tá mudado/ publique isso pra ficar documentado/ (…) Caruaru tem sua universidade/ Campina Grande tem até televisão/ Jaboatão fabrica jipe à vontade/ Lá de Natar já tá subindo foguetão/ (…) o meu Nordeste desta vez vai dispará”.
Podia até combater a canção de protesto, mas tinha um filho que se consolidava como cantor de protesto. Luiz Gonzaga Jr., o Gonzaguinha, mantinha relação conflituosa com o pai, mas desde 1968 passou a ter presença constante em seus discos. O mesmo LP que trazia "Canto sem Protesto" trazia também "Pobreza por Pobreza", de Gonzaguinha, uma autêntica canção de protesto.
Com a sanfona em punho, Luiz Gonzaga se apresenta na década de 1970
À mesma época, uma facção da MPB universitária voltou-se contra a corrente e promoveu um levante de revalorização de Luiz Gonzaga. Ele virou referência crucial para os tropicalistas baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa no período de exílio dos dois primeiros. O patriarca demonstrou gratidão e em 1971 dedicou o disco O Canto Jovem de Luiz Gonzaga à nova geração da MPB, regravando canções de Gil, Caetano e Edu Lobo. Num tapa com luva de pelica a quem o chapava como reacionário e direitista, gravou também "Fica Mal com Deus", do ícone das esquerdas Geraldo Vandré. Mais: quando se deu a anistia, colocou num compacto de 1980 uma versão em tempo de ópera sertaneja do hino antiditadura "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores" (1968), que levou Vandré à glória, ao ostracismo e à mudez.
Em 1981, pai e filho se uniram no show "A Vida do Viajante", e Gonzaguinha proferiu um discurso revoltado em defesa de Gonzagão, como está registrado no disco ao vivo: “Este show coloca para fora pelo menos um pouco da história de um dos maiores artistas que se tem conhecimento neste país. Essa pessoa é o artista talvez mais popular deste país. No entanto, é uma das pessoas mais marginalizadas através dos tempos, que foi afastada em determinado tempo de determinados horários e que não teve a possibilidade de pisar em determinados palcos ditos mais sadios”.
Discriminado, mas sempre com sucesso
À parte o esforço tropicalista e a adesão constante de artistas como Clara Nunes, Fagner, Belchior, Elba Ramalho, Milton Nascimento, Baby Consuelo, Alceu Valença, Fafá de Belém e Quinteto Violado, Gonzagão cumpriu os últimos anos de vida apartado como sempre dos circuitos mais, digamos, cultos. Continuou apresentando sucessos um atrás do outro ao grande público, em palcos bem mais “sadios” do que seu filho se dispunha a reconhecer. A bossa nova jamais se reconciliou com Gonzagão, mas o Brasil profundo nunca parou de cantar "Ovo de Codorna" (1971), "O Fole Roncou" (1973), "Capim Novo" (1976), "Viola de Penedo" (1978), "Forró No 1" (1985), "Forró de Cabo a Rabo" (1986), "Nem Se Despediu de Mim" (1987). "Pagode Russo", de 1984, foi a música mais tocada nas festas juninas de 2009.
O que ele pensava sobre segregação, desprezo, preconceito e discriminação ficará para sempre registrado como alegoria no forró "O Jumento É Nosso Irmão", de 1968, retomado em 1976 como "Apologia ao Jumento", com o seguinte discurso de protesto: “O jumento é nosso irmão, quer queira ou quer não. O jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão. Ajudou o homem na lida diária. Ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha. Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem, fez a feira e serviu de montaria. O jumento é nosso irmão, e o homem, em retribuição, o que é que lhe dá? Castigo, pancada, Pau nas perna, pau no lombo, pau no pescoço, pau na cara, nas oreia. Jumento é bom, homem é mau”.
Sudeste versus Nordeste, ricos contra pobres, bossa nova versus forró, Jobim contra Gonzagão ou o que quer que seja, o Brasil que não se vê e não se reconhece em si próprio é o Brasil que segue rejeitando Luiz Gonzaga.