O homem que engarrafava nuvens é uma das mais belas opções de férias entre as salas de cinema de Fortaleza. O filme está em cartaz no cine Unibanco 2, no Centro Cultural Dragão do Mar
Iguatu quer dizer água boa, e água boa dá belos frutos. Um exemplo é o primo de meu pai, aquele homem que engarrafava nuvens: Humberto Teixeira. Desde criança, costumava ouvir histórias sobre este meu conterrâneo poeta. E essas histórias, como a brincadeira de telefone-sem-fio, chegavam até nós mal contadas e distorcidas. O documentário O homem que engarrafava nuvens, um sensível resgate de sua filha Denise Dumont, tenta fazer justiça a ela própria, a sua mãe Margarida Jatobá e também à memória do compositor cearense, que hoje divide o reinado do baião com o mestre Luiz Gonzaga.
O filme tem um certo olhar estrangeiro sobre o sertão nordestino, o que permite que se fuja, especialmente em algumas cenas, dos surrados estereótipos que reencontramos incontáveis vezes nas biografias de personagens nordestinos. A cantoria de Asa Branca, ainda mais lírica na voz de Maria Bethânia (e mais sofrida na versão do jovem e descabelado Caetano), traduz este olhar forasteiro numa das mais belas imagens do filme: os cavaleiros em slow motion, em verdadeiros animais encantados, que jamais teriam a mesma plasticidade se retratassem fielmente o cotidiano dos nossos vaqueiros.
Esse olhar de quem saiu do Nordeste ainda jovem para tentar a carreira de atriz no Rio de Janeiro e depois em Nova Iorque, revelado constantemente por Denise Dumont nas duas horas de projeção do documentário que produziu é, ao mesmo tempo, a virtude e o pecado da história. Não se pode negar que as raízes de Humberto Teixeira e do próprio baião ganharam um colorido e um contexto dignos de quem compôs nada menos que 400 canções, que ficaram na história da música brasileira. Por outro lado, a vida pessoal de Humberto Teixeira fica ainda mais misteriosa, salvo por sua predileção pelas mulheres de olhos verdes, bem registrada em “Kalu” (tira o verde desses ói de riba d’eu…).
Poucos nomes de nossa música ficam de fora da homenagem a Humberto Teixeira: além de Bethânia e Caetano, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Bebel Gilberto, Dalva de Oliveira, Lenine, Alceu Valença e Cordel do Fogo Encantado, Carmem Miranda, David Byrne. A lista é longa e a direção musical de Guto Graça Melo, primorosa. O baião ganha versões japonesa, italiana e inglesa (na incomparável voz de Bebel Gilberto, interpretando “Juazeiro”), dialoga com o rock (Raul Seixas), o reggae, a bossa nova. O passeio histórico-musical do baião, no país e fora dele, é um ótimo motivo para se ver O homem que engarrafava nuvens.
Além de um reconhecimento ao trabalho bem menos visível do que talentoso de Humberto Teixeira, o filme lança fogo sobre as historinhas de família que diziam que Denise Dumont não usava o sobrenome Teixeira porque ele não era “artístico”. Não é bem assim: o próprio Humberto quis que ela retirasse o Teixeira do nome se resolvesse seguir a carreira de atriz, profissão que ele, publicamente, desaprovou. Depois de tantos anos de uma conflituosa (“próxima e distante”) relação com o pai, Denise Dumont (ou Teixeira) consegue provar, com o documentário, que o mito Humberto Teixeira é bem diferente de seu pai Humberto. E que aquela menina, Denise Dumont (ou Teixeira), na contramão da vontade do pai, amadureceu e agora se revela mais um talento da safra de Água Boa.
Ana Karla Dubiela