Por: ADRIANA MARTINS
Diário do Nordeste
Em "O rei e o baião", organizado pelo jornalista, artista plástico e compositor Bené Fonteles, a vida e a obra de Luiz Gonzaga são analisadas a partir de várias abordagens. Há ainda centenas de fotografias inéditas e belas xilogravuras
Vez ou outra, nas artes, na ciência, na política e em campos diversos do saber, tem-se o privilégio de acompanhar o surgimento de um gigante, pessoa cujo trabalho impressiona não apenas pela qualidade, mas pela capacidade de inspirar até o mais cético dos espíritos. Tal acontecimento revela-se ainda mais instigante quando envolve uma personalidade conter- rânea, que represente em sua obra aspectos de uma cultura.
A música brasileira inclui alguns artistas desse naipe. Um deles faria 98 anos no dia 13 de dezembro. Pernambucano, nascido no pequeno município de Exu, Luiz Gonzaga ultrapassou suas origens nordestinas. Espalhou o sertão pelo Brasil com sua poesia simples e profundamente representativa, com um talento incontestável de arranjador. Sob a combinação inédita de zabumba, triângulo e sanfona, inventou o ritmo para o baião e dele tornou-se rei.
Hoje, mais do que símbolo e ícone (basta lembrar as imagens do cantor de posse da sanfona, com o indefectível chapéu de couro), Luiz Gonzaga constitui patrimônio nacional. É no sentido de divulgar tal herança, de fortalecer a permanência de sua vida e obra, que surge o livro "O rei e o baião", organizado por Bené Fonteles – jornalista, artista plástico, compositor e mais um inspirado pelo trabalho do Mestre Lua. A obra foi lançada apropriadamente no último dia 13, em Recife. Em Brasília, o lançamento aconteceu no dia 17, no auditório do Ministério da Cultura, com a participação do ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Editado pela Fundação Athos Bulcão, "O rei e o baião" traz ensaios de Antônio Risério, Elba Ramalho, Gilmar de Carvalho, Sulamita Vieira, Hermano Vianna e do próprio Bené Fonteles, que contribui ainda com um depoimento sobre sua relação com a obra de Luiz Gonzaga, além de introdução de Juca Ferreira e apresentação de Gilberto Gil.
Xilogravura
Há ainda belos ensaios de xilogravura de José Lourenço, João Pedro do Juazeiro e Francorli e Carmem, um ensaio fotográfico sobre o universo sertanista, de Gustavo Moura, e várias fotos inéditas do Rei do Baião, oriundas de arquivos do Museu do Gonzagão (Exu-PE); Museu Fonográfico Luiz Gonzaga (Campina Grande-PB); Memorial Luiz Gonzaga (Recife-PE); Museu Cearense da Comunicação de Nirez (Fortaleza-CE); Paulo Vanderley (pesquisador independente e idealizador do website mais completo sobre o artista) e Iolanda Dantas (viúva de Zé Dantas, um dos parceiros musicais de Luiz Gonzaga).
Segundo o organizador Bené Fonteles, faltava no mercado editorial "um livro que reunisse análises profundas sobre a importância cultural de Luiz Gonzaga, uma iconografia completa, rara e inédita, além de resenhas de tudo o que saiu sobre ele, antes e depois de sua morte, e sobre sua presença no imaginário dos artistas nordestinos e sulistas", tendo sido esta sua principal motivação.
O jornalista destaca que, além dos seis anos de pesquisa, apuração e produção, o livro, na verdade, demandou "o tempo de uma vida quase toda para amar Luiz Gonzaga, e fazer uma obra digna da sua dimensão – por ser um dos seis pilares da MPB, junto a Villa-Lobos, Pixinguinha, Noel Rosa, Dorival Caymmi e Tom Jobim".
Graças à diversidade de abordagens nos ensaios de "O rei e o Baião", é possível vislumbrar com clareza esse amplo alcance de Gonzaga na cultura brasileira. Dois aspectos ganham destaque na conquista de tal relevância. O primeiro é o próprio ineditismo do trabalho de Gonzaga. Segundo o antropólogo Antônio Risério, Luiz Gonzaga recria a cultura nordestina sertaneja por meio do baião, e dela torna-se "expressão estética concentrada", ao agregar em suas composições referências tão diversas quanto a seca, o sofrimento e a contrastante alegria do povo nordestino, além de elementos como a natureza exuberante, o erotismo, o cangaço, o couro, o vaqueiro e a migração.
A própria definição de "baião" é afetada pelo trabalho de Gonzaga. Segundo Câmara Cascudo, tratava-se, entre os cantadores sertanejos, de uma "breve introdução instrumental executada antes do ´desafio´ vocal". De acordo com Risério, Gonzaga partiu desse pequeno trecho musical para redesenhar o gênero. Ao substituir o tradicional trio de viola, rabeca e pandeiro pela sanfona, a zabumba e o triângulo, o pernambucano reformula o "baião", conferindo-lhe um ritmo.
"O que Luiz Gonzaga fez foi organizar, na sua sanfona, o que rolava de modo esparso e difuso no mundo sertanejo", resume Risério em seu ensaio. Outro colaborador que destaca o ineditismo do trabalho de Gonzaga é o antropólogo Hermano Vianna, que aponta o artista como inventor da formação instrumental sanfona-zabumba-triângulo.
Além das inovações musicais, Gonzaga acertou em cheio ao adotar a roupa e o chapéu de couro – para o compositor, equivalentes à espora do gaúcho, o chapéu de palha do caipira, a camisa listrada do carioca. A decisão custou-lhe inúmeras críticas, por ser alusiva ao universo do cangaço. Para Fonteles, a persistência de Gonzaga em defesa de sua indumentária fez surgir "o segundo ícone pop da cultura brasileira, depois de Carmem Miranda, ao fundir a roupa de couro do vaqueiro com a roupa lendária do cangaceiro Lampião".
Em sua introdução do livro, o ministro Juca Ferreira ressalta, ainda, o contexto favorável do mercado fonográfico à época, segundo ele, "um momento privilegiado em que a indústria do disco e a rede radiofônica estavam no ponto ideal para receber um talento como o de Luiz Gonzaga". De fato, o mestre soube aproveitar como poucos os novos meios técnicos do setor. E imortalizou-se não apenas nos registros sonoros, mas na gratidão dos inúmeros artistas que com ele aprenderam, a exemplo de Dominguinhos.